21 outubro 2010

escoffianas brasileiras

"o polimento da técnica

Passada a fase da repetição à exaustão de um prato, quando chegamos à receita propriamente dita e a conhecemos muito bem, é a hora do polimento. E não estou falando do arremate do prato na cozinha, mas de sua concepção. É surpreendente como são diferentes as percepções de comer um prato aos bocados dentro de uma cozinha, comer o prato inteiro também na cozinha e, ainda, comê-lo como cliente, sentado no restaurante. Sutis detalhes se revelam em cada uma das situações.
Aos bocados, na cozinha, você consegue analisar individualmente cada parte que compõe o prato - a acidez, a quantidade de gordura, a textura -, mas o faz de forma isolada (considera cada um dos aspectos separadamente). Comer o prato inteiro dentro da cozinha ajuda a ter melhor noção de harmonia e proporção daqueles sabores e ingredientes. Porém, é só sentado à mesa que você vai descobrir se o garfo e a faca são adequados para aquele prato, se as temperaturas chegaram corretas, se os não estão demasiados. É na mesa que você vai notar se o primeiro bocado 'impressionante' na verdade esconde uma receita enjoativa e enfadonha.
Adoto todos esses procedimentos antes de sugerir um prato para a degustação do cliente (geralmente ele só entra no cardápio depois de passar pelo teste 'informal' do salão) e sei que é na sucessiva degustação, na extrema autocrítica e na inquietação - em busca da melhora - que mora o polimento final da técnica.

se existissem dez bocuses, será que o original, o sr. bocuse, teria valor?

O legado de Paul Bocuse na cozinha é inquestionável. É a partir dele que o chef sai dos bastidores da cozinha e ganha luz no palco. Foi Bocuse quem lapidou a carreira de cozinheiro, quem abriu espaço para as atuais 'estrelas da cozinha'. De vez em quando penso: se em vez de um Bocuse, tivéssemos dez clamando pelo mesmo propósito, daríamos o mesmo valor para o que Paul fez por nós?
Na edição de 2007 da lista dos cinquenta melhores restaurantes do mundo da publicação inglesa Restaurant Magazine, o D.O.M. apareceu na frente do Bocuse, de Paul Bocuse, e de outros nomes (como o L'Arpège, de Alain Passard) que admiro desde que comecei a prestar mais atenção no mundo da culinária. Outros restaurantes que considero perfeitos (ou quase perfeitos) nem foram citados na revista. Esse prêmio me fez perceber que o reconhecimento público vem para quem tem uma proposta original.
Vamos pensar numa das cozinhas mais populares do mundo: a italiana. Cada capital do Brasil e do mundo tem pelo menos dois (ou mais) bons restaurantes italianos. Nenhum deles, com exceção dos italianos da Itália, entrou na lista dos cinquenta melhores do mundo. Nenhum. Do meu ponto de vista, isso reafirma o que acabei de dizer. Eu entendo que não sou o dono de um dos cinquenta melhores restaurantes do mundo, sou dono, sim, de uma das cinquenta propostas mais originais para restaurante do mundo. Esse é o cerne da discussão atual, e é que vai render holofotes ao chef.
Acredito que se pode comer tão bem - e até melhor - em restaurantes que não foram citados na lista. Mas nunca fui à China sonhando em comer um cassoulet, ou à África do Sul em busca de uma feijoada. A força da globalização e a velocidade na divulgação dos fatos fazem com que tenhamos notícia do que acontece além-mar e com que saibamos o que é original em cada canto do globo. Nessa realidade, quando temos de optar entre o parecido e o original, ficaremos sempre com o original."

In: ATALA, Alex com CHAGAS, Carolina. Escoffianas Brasileiras. São Paulo: Larousse do Brasil, 2007. pág 215-219

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