19 dezembro 2011

TUDO NUM PONTO


 Italo Calvino



         Por meio dos cálculos iniciados por Edwin P. Hubble a velocidade de afastamento das galáxias, pode-se estabelecer o momento em que toda a matéria do universo estava concentrada num único ponto, antes de começar a expandir-se no espaço. A “grande explosão” (big-bang) de que se originou o universo teria ocorrido há cerca de quinze ou vinte bilhões de anos.


         Compreende-se que todos estivéssemos ali, disse o velho Qfwfq, e onde mais poderíamos estar? Ninguém sabia ainda que pudesse haver o espaço. O tempo, idem; que queriam que fizéssemos do tempo, estando ali espremidos como sardinha em lata?
         Disse “como sardinha em lata” apenas para usar uma imagem literária; na verdade, não havia espaço nem mesmo para se estar espremido. Cada ponto de cada um de nós coincidia com cada ponto de cada um dos outros em um único ponto, aquele onde todos estávamos. Em suma, nem sequer nos importávamos, a não ser no que respeita ao caráter, pois, quando não há espaço, ter sempre entre os pés alguém tão antipático quando o ser. Pbert Pberd é a coisa mais desagradável que existe.
Quantos éramos? Bom, nunca pude dar-me conta nem sequer aproximadamente. Para poder contar, era preciso afastar-se nem que fosse um pouquinho um dos outros, ao passo que ocupávamos todos aquele mesmo ponto. Ao contrário do que possa parecer, não era uma situação que pudesse favorecer a sociabilidade; sei que, por exemplo, em outras épocas os vizinhos costumavam freqüentar-se; ali, ao contrario, pelo fato de sermos todos vizinhos, não nos dizíamos sequer bom-dia ou boa-noite.
Cada qual acabava se relacionando apenas com um numero restrito de conhecidos. Os que recordo são principalmente a sra. Ph(i)Nko, o seu amigo De XuaeauX, uma família de imigrantes, uns certos Z’zu, e o Sr. Pbert Pberd,  a quem já me referi. Havia ainda uma mulher da limpeza – “encarregada da manutenção”, como era chamada -, uma única para todo o universo, dada a pequenez do ambiente. Para dizer a verdade, não havia nada para fazer durante o dia todo, nem ao menos tirar o pó – dentro de um ponto não pode entrar nem mesmo um grão de poeira -, e ela se desabafava em mexericos e choradeiras constantes.
Com estes que enumerei já éramos bastantes para estarmos em superlotação; juntem a isso tudo quanto devíamos ter ali guardado: todo o material que depois iria servir para formar o universo, desmontado e concentrado de modo que não se podia distinguir o que em seguida iria fazer parte da astronomia (como a nebulosa Andrômeda)  daquilo que era destinado à geografia (por exemplo os Vogues) ou à química (como certos isótopos de berílio). Além disso, tropeçávamos sempre nos trastes da família Z’zu, catres, colchões, cestas; esses Z’zu, se não estávamos atentos, com a desculpa de que eram uma família numerosa, agiam como se no mundo existissem apenas eles: pretendiam até mesmo estirar cordas através do ponto para nelas estender a roupa branca.
Também outros tinham lá sua implicância com os Z’zu, a começar por aquela definição de “imigrante”, baseada na pretensão de que, enquanto estavam ali primeiro, eles haviam chegado depois. Que isso era um preconceito sem fundamento, a mim me parecia claro, dado que não existia nem antes nem depois e nem lugar nenhum de onde imigrar, mas havia quem sustentasse que o conceito de “imigrantes” podia ser entendido em seu estado puro, ou seja, independentemente do espaço e do tempo.
Era uma mentalidade, digamos, restrita, a que tínhamos então, mesquinha. Culpa do ambiente em que nos havíamos formado. Uma mentalidade que permaneceu no fundo de todos nós, reparem: continua até hoje a aflorar, se por acaso dois de nós se encontram – na parada de ônibus, num cinema, num congresso internacional de dentistas – e se põem a recordar aqueles tempos. Cumprimentamo-nos – às vezes é alguém que me reconhece, outras sou eu que reconheço alguém -, e logo começamos a perguntar por um e por outro (mesmo se um se recorda apenas de alguns dos lembrados pelo outro), e assim voltamos a nos interessar pelas querelas dos tempos passados, as aleivosias, as difamações. Até o momento em que se menciona a sra. Ph(i)Nko – todas as conversas acabam sempre chegando lá -, e então, de repente, todas as mesquinhezas são deixadas de lado, e nos sentimos elevados por uma comoção generosa e abençoada. A sra. Ph(i)Nko, a única que não foi jamais esquecida por nenhum de nós e de quem todos sentimos saudades. Onde andará? Há muito perdi as esperanças de encontrá-la: a sra. Ph(i)Nko, aqueles seios, aquelas ancas, seu robe alaranjado, jamais a encontraremos, nem neste nem em qualquer outro sistema de galáxias.
Fique bem claro que nunca me convenceu a teoria de que o universo, após atingir um extremo de rarefação, voltará a condensar-se, e que, portanto, iremos nos reencontrar naquele ponto único para depois recomeçarmos tudo de novo. E, no entanto, quantos dentre nós contam apenas com isso e continua a fazer projetos par ao dia em que estivermos todos novamente reunidos? No mês passado, entrei no café ali da esquina e quem é que encontro? O sr. Pbert Pberd.
- Que anda fazendo? Que bons ventos o trazem?
Fico sabendo que tem uma firma de representação de material plástico, em Pavia. Continua o mesmo, com seu dente de prata e seus suspensórios floridos.
- quando voltarmos para lá – ele me diz, em voz baixa -, vamos ter de tomar cuidado para que desta vez certas pessoas fiquem de fora... Está me entendendo? Os Z’zu...
Deu-me vontade de dizer que já ouvira aquela história da boca de mais alguns de nós, que no fim acrescentavam: “Bem entendido... o senhor Pbert Pberd...”.
Para não me deixar levar por esse caminho, apressei-me a perguntar-lhe:
- E a senhora Ph(i)Nko, acha que voltaremos a encontrá-la?
- Ah, sim... Ela, sem dúvida... – fez ele enrubescendo.
Para todos nós a esperança de retornar ao ponto inicial é principalmente a de nos encontrarmos novamente junto à será. Ph(i)Nko. (Até mesmo para mim, que não creio nisso.) E naquele café, como acontece sempre, nos pusemos a revocá-la, comovidos, e mesmo a antipatia crônica do sr. Pbert Pberd se esvanecia de tais recordações.
O grande segredo da sra. Ph(i)Nko é que nunca despertou ciúmes entre nós. E nem mesmo mexericos. Que ia para a cama com seu amigo, o sr. De XuaeauX, era mais do que notório. Mas num ponto, se há uma cama, essa ocupa todo o ponto; logo não se tratava de ir para a cama, mas de estar nela, pois quem quer que estivesse no ponto estava igualmente na cama. Em conseqüência, era inevitável que ela fosse para a cama também com todos nós. Se fosse outra pessoa, quem sabe quantas coisas lhe diriam pelas costas. A mulher da limpeza era sempre a primeira a dar livre curso às maledicências e os outros não se faziam de rogados para imitá-la. Sobre os Z’zu, já ao contrário, quantas coisas horríveis tínhamos de ouvir: pai filhas irmãos irmãs mãe tias, ninguém escapava às insinuações mais sórdidas. Com ela, no entanto, era diferente: a felicidade que dela me vinha era ao mesmo tempo a de ocultar-me puntiforme nela e a de protegê-la puntiforme em mim numa contemplação viciosa (dada a promiscuidade do convergir puntiforme de todos para ela) e ao mesmo tempo casta (dada a impenetrabilidade puntiforme dela). Em suma, que eu poderia pedir mais?
E tudo isso, assim como era verdadeiro para mim, também o era para cada um dos demais. E para ela: continha e era contida com uma alegria igual, e nos acolhia, amava e coabitava com todos igualmente.
Se tudo estava tão bem assim, tão bem, é que qualquer coisa de extraordinário deveria acontecer. Bastou que a certo momento ela dissesse:
- Pessoal, se tivesse um pouco mais de espaço, como gostaria de preparar um tagliatelle!
E naquele momento todos pensamos que teriam ocupado os seus roliços braços movendo-se para frente e para trás com o rolo a adelgaçar a massa, o grande volume de peito descendo sobre o grande monte de farinha e de ovos que atulhava a imensa travessa enquanto seus braços amassavam amassavam, brancos e untados de óleo até os cotovelos; pensamos no espaço que haveria de ocupar a farinha, e o grão para fazer a farinha, e os campos para cultivar o grão, e as montanhas das quais descia a água para irrigar os campos, e os pastos para os rebanhos de gado que forneceriam a carne para o molho; no espaço que seria necessário para que o Sol chegasse com seus raios e amadurecesse o grão; no espaço que seria necessário para que a partir das nuvens de gás estelares o Sol se condensasse e inflamasse; na quantidade de estrelas e galáxias e amontoados galácticos em fuga no espaço que teria sido necessário para manter suspensa cada galáxia cada nebulosa cada sol cada planeta, e no momento mesmo em que o pensávamos esse espaço começou, incontidamente, a se formar; no exato momento em que a senhora Ph(i)Nko pronunciava aquelas palavras: "... um tagliatelle, hein, pessoal!", o ponto que continha e a nós todos se expandia numa auréola de distâncias de anos-luz e milhares de anos-luz, e éramos projetados para os quatro cantos do universo (o sr. Pbert Pberd  foi bater em Pavia), e ela se dissolveu não sei em que espécie de energia luz calor, ela, a senhora Ph(i)Nko, aquela que em meio ao nosso fechado mundo mesquinho fora capaz de um impulso generoso, o primeiro, "Ah, pessoal, que tagliatelle eu prepararia!", um verdadeiro impulso de amor geral, dando inicio no mesmo instante ao conceito de espaço, e ao espaço propriamente dito, e ao tempo, e à gravitação universal, e ao universo gravitante, tornando possíveis, milhares e milhares de sóis, de planetas, de campos de trigo e de senhoras Ph(i)Nko, espersas pelos continentes dos planetas batendo a massa com seus braços brancos enfarinhados, untuosos e generosos, enquanto ela se perdia a partir daquele instante, deixando-nos a recordá-la saudosos.

In: Calvino, Italo. As Cosmicômicas. São Paulo: Companhia das Letras, 1999 

Um comentário:

Viviane disse...

...são por essas e outras q me encanto com a culínária e c vc...os dois, poesia! Viviane