Biscoitos de álcool
1 copo de aseite, 1 copo de alcool ractificado, 1 copo de
agua, assucar ao paladar, amassar bem, farinha o que levar, amassar bem,
fermento 1 colher, sovar ele o passar pela maquina de carne umas 3 veses,
coando estiver pronto, fas os biscoitos, e vai ao forno.
Essa receita foi escrita de próprio punho, num caderno, por
uma das senhoras da família judia sefardi mencionada na introdução desse
artigo. A grafia é própria da época em que foi escrita e da forma como essa
senhora, que falava originalmente turco e ladino, aprendeu o português.
A receita é singela. Ela revela ser de um tempo em que a ciência
não tinha penetrado o universo culinário – ou como diria Koyré (1980), de um
mundo do ‘mais ou menos’. A ausência de precisão na quantidade dos ingredientes
(assucar ao paladar, farinha o que levar) e aos procedimentos (amassar bem, fas
os biscoitos) conferem a esse texto culinário a simplicidade das anotações
pessoais. Contudo, a senhora já sabia preparar a receita, há muito tempo a
preparava, o que indica que não a estava escrevendo para si mesma, mas para que
fosse transmitida para as próximas gerações, na família. A passagem para a
escrita revela o desejo de permanência da comida na comunidade deslocada de seu
lugar de origem, talvez porque ela percebesse o mundo em mudança.
Waxman (1996) ressaltou a complexidade de escritos
culinários aparentemente simples como os biscoitos de alcool. Eles evidenciam
um confiança subjacente, confiança de que a escritora da receita, com poucas
palavras, poucos números e linguagem um tanto imprecisa, ao mesmo tempo,
confiança de que a pessoa que lê a receita compreende exatamente o que a
escritora deseja. A forma da escrita revela uma conexão muito forte entre
escritor e leitor, que compartilham saberes a respeito de ingredientes e
técnicas culinárias, bem como sobre o resultado esperado. Um simples relato dos
ingredientes e método parece ser suficiente, pressupondo que todo o resto
emergiria da experiência compartilhada e do senso comum. Há proximidade entre
quem escreve e quem lê.
Na receita diz ‘assucar ao paladar’. Uma pessoa poderia se
perguntar: paladar de quem? No entanto a pergunta não tem sentido, porque se
houvesse dúvida a quantidade estaria estabelecida, como se dá com o azeite e o
álcool. O fato de não ser colocada uma interrogação a respeito do paladar
pressupõe que há um gosto assumido naquela família, que se estenderá às futuras
gerações, como sendo ‘o’ gosto possível, ‘o’ sabor esperado no biscoito de
álcool. Há a confiança de que o paladar é coletivo. O mesmo é válido para a
quantidade de farinha ‘farinha o que levar’ (para que fique como?), bem como
para o procedimento de ‘amassar bem’ (até que ponto?) e assar ‘vai pro forno’
(por quanto tempo?, a quantos graus?, até que fique como?). todo o não-dito na
receita está pressuposto nos destinatários sob a forma de saberes tácitos,
construídos e mantidos na experiência cotidiana, conhecimentos sobre os quais
não se colocam perguntas, saberes que fazem parte da vida vivida. A receita
narra a partilha de saberes que se mantêm como memória social e, ao serem
transmitidos com base na receita, contam a história de como uma comunidade
compreendeu e aceitou o gosto, textura e forma de uma comida.”
In: AMON, Denise e MENASCHE, Renata. Comida como narrativa da
memória social.
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