20 fevereiro 2013

O museu dos queijos



“O senhor Palomar está na fila de uma loja de queijos, em Paris. Quer comprar certos queijinhos de cabra que são conservados em óleo em pequenos frascos transparentes, temperados com várias ervas e especiarias. A fila dos fregueses se forma ao longo de um balcão em que estão expostos exemplares das mais insólitas e disparatadas espécies. É uma loja cujo sortimento parece querer documentar todas as formas de laticínios imagináveis; seu próprio nome, Spécialités froumagères, com aquele raro adjetivo arcaico ou regional adverte que ali se reverencia a herança de um saber acumulado por uma civilização através de toda a sua história e geografia.
Três ou quatro moças de avental cor-de-rosa atendem os fregueses. Tão logo termina o atendimento de um deles, convocam o primeiro da fila, solicitando-lhe que explicite os seus desejos; o freguês designa e quase sempre aponta, deslocando-se pela loja em direção ao objeto de seus apetites precisos e competentes.
Nesse momento toda a fila avança um passo; e quem até agora estava ao lado do Bleu d’Auvergne estriado de verde passa ocupar a altura do Brin d’amour, em cuja brancura ficaram aderidos frios de palha seca; quem contemplava uma bola envolta em folhas pode agora concentrar-se num cubo salpicado de cinzas. Há quem extraia dos encontros dessas etapas fortuitas inspiração para novos estímulos e novos desejos: muda de idéia sobre o que estava para pedir ou acrescenta um novo nome à sua lista; e há os que não se deixam distrair nem mesmo por um instante do objetivo que vinham perseguindo e qualquer sugestão diversa com a qual se choquem servirá apenas para delimitar, por via da exclusão, o campo daquilo que obstinadamente querem.
O ânimo de Palomar oscila entre impulsos contrastantes: o que tende a um conhecimento completo, exaustivo, que só poderia ser satisfeito se ele pudesse provar todas as qualidades; ou o que tende a uma escolha absoluta, à identificação do queijo que seria apenas seu, um queijo que certamente existe mesmo que ele agora não o saiba reconhecer (ou não saiba reconhecer-se nele).
Ou melhor ainda: não é questão de escolher seu próprio queijo mas de ser escolhido por ele. Há uma relação recíproca entre queijo e freguês: cada queijo espera seu freguês, se enfeita de modo a atraí-lo, com uma consistência ou granulosidade um tanto arrogante, ou ao contrário esparramando-se em abandono condescendente.
Uma sombra de cumplicidade viciosa adeja em torno: o refinamento gustativo e principalmente olfativo conhece seus momentos de relaxamento, de acanalhamento, em que os queijos em suas bandejas parecem oferecer-se como se num divã de bordel. Um sorriso de escárnio perverso aflora na satisfação de aviltar o objeto da própria glutoneria com nomes infamantes: crottin, boule de moine, bouton de culote.
Esse não é o tipo de conhecimento em que o senhor Palomar é mais inclinado a aprofundar-se: para ele bastaria estabelecer a simplicidade de um relacionamento físico direto entre o homem e o queijo. Mas se em lugar dos queijos vir nomes de queijos, conceitos de queijos, significados de queijos, histórias de queijos, concursos de queijos, psicologias de queijos, se – mais que souber – pressentir que por trás de cada queijo existe tudo isso, eis que seu relacionamento se torna muito mais comlexo.
A queijaria apresenta-se a Palomar como uma enciclopédia a um autodidata; poderia memorizar todos os nomes, tentar uma classificação segundo as formas – sabonete, cilindro, cúpula, bola -, segundo a consistência   –,  seco, pastoso, cremoso, estriado, compacto  –, segundo os materiais estranhos que entram na preparação da crosta ou da massa  – uva passa, pimenta, nozes, gergelim, ervas, bolores  –, mas isso não se aproximaria em nada do verdadeiro conhecimento, que está na experimentação dos sabores, feita de memória e de imaginação ao mesmo tempo, e somente com base nesta s poderia estabelecer uma escala de gostos e preferências, curiosidades e exclusões.
Por trás de cada queijo há um pasto de um verde distinto sob um céu distinto: prados incrustados como sal que as marés da Normandia depositam todas as tardes; prados perfumados de aromas ao sol ventoso da Provença; há rebanhos distintos com suas estabulações e transumâncias; há segredos de elaboração transmitidos por séculos e séculos. Esta loja é um museu: o senhor Palomar ao visita-la sente, como no Louvre, em cada objeto exposto a presença da civilização que lhe deu forma e dele toma forma.
Esta loja é um dicionário; a língua é o sistema dos queijos em seu conjunto: uma língua cuja morfologia registra declinações e conjugações de variantes inumeráveis, e cujo léxico apresenta uma riqueza inexaurível de sinônimos, expressões idiomáticas, conotações e sutilezas vocabulares, como todas as línguas nutridas pelo aporte de centenas de dialetos. É uma língua feita de coisas; a nomenclatura é apenas um aspecto exterior dela, instrumental; mas, para o senhor Palomar, aprender um pouco de nomenclatura constitui sempre a primeira medida a tomar para reter por um momento as coisas que perpassam diante de seus olhos.
Tira do bolso um bloquinho, uma caneta, e nele começa a escrever nomes e assinalar ao lado de cada nome algum qualificativo que lhe permita revocar a imagem à memória, tenta mesmo desenhar um esboço sintético da forma. Escreve pavé d’Airvault, anota ‘bolores verdes’, desenha um paralelepípedo chato e ao lado acrescenta ‘cerca de quatro centímetros’; escreve St. Maure, anota ‘cilindro cinza granuloso com um bastãozinho dentro’ e o desenha, calculando a olho sua medida, ‘vinte centímetros’; depois escreve Chabicholi e desenha um pequeno cilindro.
Monsieur! Houhou! Monsieur!’ – Uma jovem queijeira vestida de rosa está diante do senhor Palomar, absorto em seu caderninho. Chegou a sua vez de pedir; na fila atrás dele todos estão observando seu comportamento incôngruo e balançam a cabeça com esse ar entre irônico e impaciente com que os habitantes das cidades grandes consideram o númeor sempre crescente dos débeis mentais que andam soltos pelas ruas.
O pedido saboroso e elaborado que tencionava fazer lhe foge da memória; gagueja, recai no que há de mais óbvio, mais banal, mais divulgado, como se os automatismos da civilização de massa esperassem apenas aquele seu momento de incerteza para reencerrá-lo em seu poder.”

In: CALVINO, Italo. Palomar. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. págs 66-69

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