28 junho 2015

Vatapá da dona Flor


         Tomem o ralo e de dois cocos escolhidos – e ralem. Ralem com vontade, vamos, ralem; nunca fez mal a ninguém um pouco de exercício (dizem que o exercício evita os pensamentos maus: não creio). Juntem a branca massa bem ralada e a aqueçam antes de espremê-la: assim sairá mais fácil o leite grosso, o puro leite de coco sem mistura. À parte o deixem.
         Tirado esse primeiro leite, o grosso, não joguem a massa fora, não sejam esperdiçadas, que os tempos não estão de desperdício. Peguem a mesma massa e a escaldem na fervura de um litro d’água. Depois a espremam para obter o leite ralo. O que sobrar da massa joguem fora, pois agora é só bagaço.
         Viúva é só bagaço, limitação e hipocrisia. Em que nação enterram a viúva na cova com o marido? Em que país tocam fogo no seu corpo junto com o corpo do defunto? Antes assim, de uma vez queimada e em cinza, em lugar de consumir-se em fogo lento e proibido, de queimar-se por dentro em ânsia e em desejo; por fora hipocrisia, um recato de fazendas negras, os véus cobrindo uma aflita geografia de medo e de pecado. Viúva é só bagaço e aflição.
         Descasquem o pão dormido e descascado o ponham nesse leite ralo para amolecer. Na máquina de moer carne (bem lavada) moam o pão assim amolecido em coco, e moam amendoins, camarões secos, castanhas de caju, gengibre, sem esquecer a pimenta malagueta ao gosto do freguês (uns gostam de vatapá ardendo na pimenta, outros querem uma pitada apenas, uma sombra de picante).
         Se o vatapá, forte de gengibre, pimenta, amendoim, não age sobre a gente dando calor aos sonhos, devassos condimentos? Que sei eu de tais necessidades? Jamais necessitei de gengibre e amendoim; eram a mão, a língua, a palavra, o lábio, seu perfil, sua graça, era ele quem me despia do lençol, e do pudor para a louca astronomia de seu beijo, para me acender em estrelas, em seu mel noturno. Quem me despe hoje dos véus da pudicícia em meus sonhos de viúva no leito solitária? De onde vem esse desejo a me queimar o peito e o ventre, se nem a mão nem o lábio, nem o perfil de lua, nem o riso agreste, se ele não está? Por que esse desejo nascendo de mim mesma? Por que tanta pergunta, por que esse interesse de saber o que se passa no íntimo da viúva? Por que não me deixam os negros véus do luto sobre o rosto, véus do preconceito, cobrindo minha face dividida, em recato e em anseio dividida. Sou uma viúva, nem falar de tais coisas fica bem ao meu estado. Viúva no fogão a cozinhar o vatapá, pesando o gengibre, o amendoim, a malagueta, e tão-somente.
         A seguir agreguem o leite de coco, o grosso e puro,
e finalmente o azeite de dendê, duas xícaras bem medidas: flor de dendê, da cor de ouro velho, a cor do vatapá. Deixem cozinhar por longo tempo em fogo baixo; com a colher de pau não parem de mexer, sempre para o mesmo lado: não parem de mexer senão embola o vatapá. Mexam, remexam, vamos, sem parar; até chegar ao ponto justo e exatamente.
         Em fogo lento meus sonhos me consomem, não me cabe culpa, sou apenas uma viúva dividida ao meio, de um lado viúva honesta e recatada, de outro viúva debochada, quase histérica, desfeita em chilique e calundu. Esse manto de recato me asfixia, de noite corro as ruas em busca de marido. De marido a quem servir o vatapá doirado e meu cobreado corpo de gengibre e mel.
         Chegou o vatapá ao ponto, vejam que beleza! Para servi-lo falta apenas derramar um pouco de azeite de dendê por cima, azeite cru. Acompanhado de acaçá o sirvam, e noivos e maridos lamberão os beiços.

In: AMADO, Jorge. Dona Flor e seus dois maridos: história moral e de amor; ilustrações de Floriano Teixeira. Rio de Janeiro: Record, 1975, pág 212

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