28 novembro 2015

O Pastelzinho



                “No dia, houve o casamento, no civil e no religioso. Na igreja, de joelhos diante do altar, ele julgava ouvir, alternadamente, a voz do amigo e a do médico. Uma dizendo: – “A primeira noite é tudo”. E a outra:   “Nada de salgadinhos! Nada de doces!”. De fato, desde as primeiras horas do dia que observava um extremo rigor de alimentação. Renunciara ao leite, que podia fazer mal ao fígado; alimentara-se, sobretudo, de frutas acima de qualquer suspeita: – bananas e mamão. Não almoçara, porque a hora do almoço coincidira com a do civil. Ao sair da igreja, sentia fome. Chegara de volta à casa dos sogros com fome. Viu os salgadinhos, os doces e, a despeito de uma tentação violenta, manteve-se irredutível. De vez em quando, pessoas da casa passavam com pratos de sanduíches, de pastéis, de doces. Perguntavam:
                – Aceita um?
                Respondia, heróico:
                – Não, obrigado.
                Ficou, assim, inexpugnável, até o fim. A noiva que, por natureza, tinha um apetite de passarinho, não tocou em nada. Minto: – aceitou um pastelzinho. Ele ainda teve vontade de sugerir-lhe: – “Não faça isso!”. Calou-se, porém. Por fim saíram, de táxi alugado, para um hotel no centro, onde tinha alugado um apartamento no décimo segundo andar para a lua-de-mel. Ao entrar no carro, Dalva balbucia: – “Não sei, mas não estou me sentindo bem”. Sem dizer nada, guardou para si a intuição: – “Foi o pastelzinho”. No meio do caminho, novo lamento: – “Estou me sentindo tão mal!”. Falara de dentes trincados. Disse ainda: – “Tomara que a gente chegue logo, tomara!”. Sentindo a angústia do ser amado, comandou o chauffeur: – “Quer andar mais depressa?”. Ao lado, Dalva crispava-se toda, gelada de dor. Sérgio baixa a voz:
                – Queres que eu compre elixir paregórico?
                – Não diz isso. Não diz nada. Só quero é chegar, meu Deus!
                Ia balbuciando: – “Não sei se aguento! Não sei se aguento!”. Ele finalmente diz: – “Foi aquele pastelzinho, não foi?”. Ela arquejava, chamando a atenção das pessoas. Sobe o elevador com o marido, que apanhara a chave.  Lá em cima, exigiu: – “Não entra, fica no corredor!”. Ele espera uns vinte minutos. Nada. Empurra e vem, então, lá de dentro, o berro:  “Não!”. Da porta, pergunta: – “Queres elixir paregórico?”. Outro “não” violento.
                Mais meia hora e quer forçar a situação. Entra. Mas quando Dalva percebe que o marido está ali, alucina-se. Ele a viu correr em direção da janela, trepar no parapeito e atirar-se lá de cima, do décimo segundo andar, deixando no ar o seu grito em flor.
                Meia hora depois, chegam parentes, amigos, simples conhecidos. Diante da morte de uma noiva, em sua primeira noite, insinuou-se, em todos os espíritos, a ideia de um tenebroso crime sexual. O sogro de Sérgio agarrou-o pela gola e o sacudiu, aos berros:
                 Ela matou-se por que?
                Respondeu, num soluço imenso:
                – Uma cólica a matou! Foi o pastelzinho!


in: RODRIGUES, Nelson. O Melhor do Romance, Contos e Crônicas. São Paulo: Companhia das Letras. 1993

2 comentários:

Ana Picolo disse...

Bem lembrado do velho Nelson... Que mente aguçada a dele.

Aline Higa disse...

Ótimo né Ana? :D