Boston baked beans
Farofinha para depois do amor
Banana assada
Couvinha mineira
Uísque
Bolo com geleia do Sol em Libra
MERCÚRIO NO LOTE DO FEIJÃO
O Velho e a Flor
Por céus e mares eu andei,
Vi um poeta e vi um rei
Na esperança de saber
O que é o amor.
Ninguém sabia de dizer,
Eu já queria até morrer
Quando um velhinho
Com uma flor assim falou:
O amor é o carinho,
É o espinho que não se vê em cada flor.
É a vida quando
Chega sangrando aberta em pétalas de amor.[1]
Quem anda, conversa e procura respostas é Mercúrio. Que no mapa do Vinicius está em Escorpião. Seu dispositor, Marte, está em Câncer conjunto ao Lote de Vênus.
O amor o nutre. O amor é a sustança da vida.
Quando essa compreensão chega até Mercúrio, ele precisa encontrar o Amor, e com urgência! Ele quer até morrer!
— Vinicius, você amou realmente alguém na vida? Telefonei para uma das mulheres com que você casou, e ela disse que você ama tudo, a tudo você se dá inteiro: a crianças, a mulheres, a amizades. Então me veio a ideia de que você ama o amor, e nele inclui as mulheres.
— Que eu amo o amor é verdade. Mas por esse amor eu compreendo a soma de todos os amores, ou seja, o amor de homem para mulher, de mulher para homem, o amor de mulher por mulher, o amor de homem para homem e o amor de ser humano pela comunidade de seus semelhantes. Eu amo esse amor mas isso não quer dizer que eu não tenha amado as mulheres que tive. Tenho a impressão que, àquelas que amei realmente, me dei todo.[2]
Tanto as mulheres quanto os amigos são representados no mapa de Vinicus pelo Sol em Libra, na primeira casa, o próprio Vinicius. O outro nasce nele. Porque o Sol é o nosso doador de vida, dissipador das trevas.
No dia 19 de outubro de 1913, no momento em que o Sol se levantava, Mercúrio ainda estava na sombrinha da noite, na segunda casa.
Já que Mercúrio é criança, permita-me a imagem: quem já fez a experiência de fazer um feijão brotar e ficou observando ansiosa e curiosamente, deve se lembrar de quando desponta um narizinho. É um momentinho antes de o broto vir à luz. Esse é o retrato de esse Mercúrio: escondidinho, preocupado com a sua sobrevivência, e conjunto ao Lote Árabe do Feijão.[3]
Mercúrio em Escorpião conjunto ao Lote do Feijão, disposto por Marte conjunto ao Lote da Vênus faz das tripas coração, retira sua vida das entranhas, como faz o broto. Ao mesmo tempo, para sobreviver procura, por céus e mares, mesmo que ninguém saiba de dizer, a sustança da vida. Porque quando o amor acaba é muita tristeza! C'est la fin des haricots![4]
Nas andanças ele viu: o amor, como o feijão, está em — quase — todos os lares. Em alguns é mais ralinho, em outros é cuidado em todos os seus detalhes, em alguns gordos e generosos, em alguns podem ser ousados nos temperos ou modo de fazer.
Para Vinicius trago esse feijão de banheira quentinha no forno, baseado na receita do Boston Baked Beans.
Voluptuoso e gentilíssimo!
Fica muito bom no dia seguinte, e é perfeito pro caso de alguém chegar em casa com fome de madrugada. Um amorzinho esperando na geladeira.
O amor é o carinho mas também é o espinho que não se vê em cada flor. Assim também o feijão, com seus antinutrientes. Mercúrio em escorpião conhece essa toxidade e dá a solução: água fixa.
Explico. Na véspera, coloque o feijão branco de molho. Melhor em bastante água pra ele ter espaço pra crescer quando hidratados.
Faça também o pré-preparo das cenouras. Corte em lâminas ou rodelas de 2mm de espessura, massageie com sal e reserve. Isso fará com que elas fiquem resistentes e não desmanchem no forno.
No dia seguinte dispense a água do demolho e cozinhe o feijão em água nova. Atente para que fiquem ainda inteirinhos. Como Vinicius, que escrevia na água fixa da banheira, esse Mercúrio ainda tem pela frente mais um bom tempo de repouso no forno quentinho onde o cozimento continua.
Enquanto o feijão cozinha, prepare o molho, misturando e levando a ferver: o melado de cana, o sal, a pimenta do reino, a mostarda em pó, a passata (ou tomate em lata), o molho inglês e o açúcar mascavo.
Mesmo com tantos temperos, o sabor final não é exótico, é sim bastante adocicado; esses temperos todos ficam ali como segredos, e quando combinado aos outros pratos da refeição faz com que, por contraste, os sabores de todos os pratos venham à tona. É como se, assim como o Sol em Libra do Vinicius mostra como o outro nasce nele. Ele, Libra, é o próprio contraste, é o velho e a flor, o que bater ali vai ressaltar por espelhamento.
Lave e seque as cenouras. Tempere com páprica defumada.
Pré-aqueça o forno a 180°C.
Por último, pique finamente a cebola. Cebola cortada fermenta com facilidade. Melhor não brincar com escorpião.
Quando os feijões estiverem cozidos escorra mas reserve o caldo. Monte, em uma travessa untada com azeite, camadas alternadas de feijão, cenoura e cebola picada. Duas camadas de cada. Então regue com o molho e, se necessário, cubra com caldo do cozimento do feijão.
Leve ao forno, coberto com tampa ou papel alumínio.
No final ele não fica cheio de caldo mas é importante que os grãos não ressequem então cuide do assado e regue com mais um pouco da água do cozimento se secar demais.
Sugiro como acompanhamento um preparo brasileiro: brócolis refogado com alho, temperado simplesmente com sal e pimenta do reino preta; e molho de pimenta perfeitamente ignaro.[5]
Pimenta, alimento de Marte, aquele que está em conjunto com o Lote de Vênus do poeta. Dispositor do Mercúrio. É a única coisa que me dá certeza de estar vivo.
É a vida que chega sangrando em pétalas de flor.
Ingredientes:
1 xíc feijão branco
1 cenoura
½ cebola
½ cc páprica defumada
azeite de oliva extra virgem
para o molho:
1 ½ cS de melado de cana
1 cc sal
1/4 cc pimenta do reino preta moída
1/4 cc mostarda em pó
1/2 xícara de passata ou tomate em lata picado
2 cc molho inglês
[1] Vinicius de Moraes. O Velho e a Flor
[2] Clarice Lispector. Entrevistas. Rio de Janeiro: Rocco, 2007
[3] relação entre Marte e Saturno
[4] C'est la fin des haricots: expressão francesa: é o fim do mundo. (no séc. passado eram distribuídos feijões nos internatos para os alunos que não tinham outros alimento; quando não havia feijão para comer, era "o fim do mundo". Em www.thefools.com.br
[5] Daniela Narciso, Edith Gonçalves (orgs). Pois sou um bom cozinheiro: Receitas, histórias e sabores da vida de Vinicius de Moraes. São Paulo: Companhia das Letras. 2013
FAROFINHA PARA DEPOIS DO AMOR
Ao fazer uma farofinha para depois do amor, antes necessário ter amado. É preciso que umas pálpebras cerradas Lembrem um verso de Éluard e que se acaricie nuns braços alguma coisa além da carne: que se os toque como no âmbar de uma tarde[1]. Depois é preciso ir com seu amor até a cozinha, enquanto você corta a vagem, seu amor pica a cebola. Não, não faça seu amor chorar. É preciso ter coragem, corte você a cebola. Ela vai despertar um choro, assuma essa tristeza. É necessária certa tristeza. É preciso ser consolada pelo seu amor. É preciso limpar um punhado de vagens holandesas, e deixar separadas três tipos de farinhas. Medir e cortar ingredientes dançam bem com a melancolia. Um punhadinho de farinha de aveia, um punhado de farinha de mandioca, dois punhados de farinha de milho bijú. Quando pedir para o seu amor alcançar o pote com a farinha de milho bijú é preciso trocar um beijo. Se seu amor estiver com as mãos úmidas de cortar os tomates, alcance a farinha por sua conta e na volta é preciso lhe dar um beijinho.
É preciso conferir a mise en place: cebola picadinha, alho, tomate em cubinhos, vagem limpa e cortada; farinhas separadas em seus punhados. Sal, pimenta do reino, molho de pimenta, óleo de coco, cheirinho verde manjericão. Como o amor, a farofinha pode ser de diversos dotes, tempere como preferir, coloque os legumes prediletos do seu amor.
A chama do fogão, como todas as outras, precisa de cuidado. Primeiro, na frigideira, em chama não muito forte, deve-se derreter a gordura e ali fazer suar a cebola, desmilingüindo-se em gozo; deve-se temperá-la com sal e pimenta do reino. Salgue cada coisa a seu tempo, uma leve pitadinha que chove dos dedos do poeta é mais amável do que a colherada bruta de sal no final do preparo. É preciso não se distrair, junte-lhe o alho picadinho ou amassadinho e logo depois as vagens. Quando a música denunciar que estão frigindo, é hora de adicionar os tomatinhos e deixar, como dizem os franceses, em fogo doce.
Não se pode secar um refogado tacando-lhe a farinha sem nenhum cuidado. A farinha deve ser recebida na panela como quem finalmente chega aos braços saudosos do seu amor, se completando, se adorando em devoção.
Em outra frigideira, em fogo doce, deve-se derreter mais um naco de óleo de coco, rapidamente adicionar e mexer a farinha de aveia, para que a gordura a penetre por igual, mais uma pitadinha de sal, e sempre mexendo, deixá-la tostar.
Quando a vagem estiver al dente, junte-lhe a farinha tostadinha. Remexa sempre.
Aproveite a frigideira quente e derreta mais um punhado de óleo, deite-lhe o bijú.
A farinha de mandioca não deve ser tostada. Ela deve ir agora direto para a panela da farofinha quase junto com a aveia, para ter uma gominha, muito sutil, apenas uma saudadezinha do corpo voluptuoso dado por ela aos pirões.
Bem ao final deve-se juntar tudo na farofa: bijú, cheiro verde, manjericão, molho de pimenta. Pois, como sabem, uma boa farofa necessita de um bocado de quentura e acidez. E torna instigados os palatos dos amantes.
Sirva sobre Bananas-do-Paraíso assadas.
Ingredientes:
cebola
alho
tomate
vagem (a holandesa fica mais bonita por ser escura mas é ótima a vagem comum)
farinha de mandioca fina
farinha de aveia
farinha de milho bijú
óleo de coco ou manteiga vegetal
pimenta-do-reino preta (quebrada na hora é melhor)
sal
cheiro verde
manjericão
para acompanhar:
molho de pimenta
bananas assadas (banana do paraiso, banana nanica, banana caturra…)
[1] Vinicius de Moraes. Receita de Mulher
PAPOS DE ANJO
Tome o signo Ascendente e localize seus regentes. Eis o nativo. Algum planeta na primeira casa? Tome também.
O Ascendente em Libra nos leva a Vênus e Saturno.
Saturno está em Gêmeos, na casa nove, conjunto à Lua. O nativo foi diplomata mas antes disso sonhou ser padre. Dois caminhos que passam pela casa nove. Saturno conjunto à Lua é a junção entre a primeira e a última esfera, ponte para o Inominável, e a Lua na primeira esfera, que trata de toda a matéria desse mundo de Deus e é boa configuração para um padre! Saturno e Lua regidos por um Mercúrio mudo, que escuta, e escuta também o invisível. Por sua vez, disposto por Marte conjunto ao Lote de Vênus, quando fala é certeiro e cuidador.
Mercúrio dispõe Vênus em Virgem que ama a pureza. Imagino que os sermões sejam um pouco severos. Mas para a harmonia da paróquia, é preciso. É preciso resistir a algumas tentações. Principalmente ele mesmo. Ninguém disse que seria fácil.
Felizmente ainda resta um bocado de vinho e um bocado de amigos.[1]
Resta ainda a mesa, e a doçaria; este, um território perigosíssimo.
"Entre compotas de cajus, cocadas, pães de ló, biscoitos de polvilho, e tantos outros doces e bolachas que figuraram nos primeiros receituários brasileiros, registrados a partir do século 16, chama a atenção uma categoria de quitutes com nomes, digamos, mais sentimentais. Criados em conventos de Portugal e, posteriormente, reproduzidos em suas colônias, como o Brasil, esses doces 'sussurravam nomes que eram confissões, apelos, críticas, murmúrios de queixas', como descreveu Câmara Cascudo, em História da alimentação no Brasil. Na lista do folclorista, alguns deles: 'bolinhos de amor, esquecidos, melindres, paciências, raivas, sonhos, beijos, suspiros, abraços, caladinhos, saudades'.
A sensação é de que os quitutes eram uma forma de extravasar as opressões do claustro e deixar à flor da pele sentimentos e comportamentos criticados pela igreja católica, especialmente entre os membros do clero. Em Casa-Grande & Senzala, o antropólogo Gilberto Freyre opinou sobre quão lasciva podia ser encarada essa produção de doces: 'Na culinária colonial brasileira surpreendem-se os estímulos ao amor e à fecundidade. Mesmo nos nomes de doces e bolos de convento, fabricados por mãos seráficas, de freiras, sente-se às vezes a intenção afrodisíaca, o toque fescenino a confundir-se com o místico: suspiros-de-freira, toucinho-do-céu, barriga-de-freira, manjar-do-céu, papos-de-anjo. Eram os bolos e doces porque suspiravam os freiráticos à portaria dos conventos. Não podendo entregar-se em carne a todos os seus adoradores, muitas freiras davam-se a eles nos bolos e caramelos. Estes adquiriam uma espécie de simbolismo sexual.'
O crítico literário Afrânio Peixoto também registrou em seus estudos os doces com nomes recheados de segundas intenções: beijinhos, desmamados, levanta-velho, língua-de-moça, casadinhos, mimos-de-amor: “Não foram outros como nós, gozadores, que lhes demos (aos doces) tais apelidos, mas as suas autoras, as respeitáveis abadessas e freiras dos conventos portugueses nos quais a ocupação, mais do que o serviço divino, era a fábrica dessas iguarias.”[2]
Os doces, se tivessem nomes insípidos ou vagotônicos, ainda assim seriam um problema. O Lote Árabe do Açúcar abre a casa doze do mapa de Vinicius, também claustro da sua Vênus. Casa doze, júbilo de Saturno, o que trama às escondidas. Lugar de autossabotagem e de vícios.
Realmente, Vinicíus desenvolveu diabetes. Suspiros de freira, toucinhos do céu, mimos de amor ficaram proibidos. Ainda assim, salpicava açúcar nos pratos salgados e, como conta sua filha, "o poetinha era um confesso 'assaltante noturno de geladeira' – nem sempre ele escondia os rastros dos seus delitos gastronômicos noturnos. Pois certa vez deixou ele esqueceu os óculos no refrigerador".[3]
[1] O planeta regente da casa 11, dos amigos, está angular e o Lote Árabe do Vinho está angular, a 290 46' de Capricórnio.
[2] Rachel Bonino, para a revista Menu. Autora do site http://asacolabrasileira.com.br/
[3] Daniela Narciso, Edith Gonçalves (orgs). Pois sou um bom cozinheiro: Receitas, histórias e sabores da vida de Vinicius de Moraes. SP: Companhia das Letras. 2013
GELEIA DO SOL EM LIBRA
O Sol em queda cozinha venusianamente em fogo doce, e por muito tempo, à moda de Saturno. É preciso um bocado de tristeza para ficar horas rodeando a panela quente, mexendo para não deixar a lava pegar no fundo, ou queimar nas bordinhas; um molejo de amor machucado.
Será por isso que o cozinheiro libriano às vezes pesa a mão no açúcar?
Cuidado, açúcar também é droga, que é assunto de Vênus porque ela dá prazer- e nem precisa ser Vênus de casa doze casa de vícios, não, como é a do Vinicius. A vida não é de brincadeira, amigo.
No prato saturnino, o açúcar é o conservante, e que preserva da deterioração.
A balança está aqui, difícil é encontrar o equilíbrio.
Hidratar 400g de cranberries secas de Saturno pesar pela tristeza
Fazer uma calda rala com 1/2 xíc água e 1/4 xíc açucar
Liquidificar uma maçã com suco de meio limão e um pouco de água
Juntar cranberries e suco de maçã à calda e manter em fogo baixo, mexendo até a consistência desejada (se precisar colocar mais água, melhor colocá-la já quente)
Quando estiver pronto, com a aparência espelhada, apagar o fogo e esperar esfriar. Só então adicionar 2cc água de rosas da Vênus.
SPICA
No momento em que Vinicius de Moraes nasceu, a Virgem se levantava um pouquinho antes do Sol [1]. O Sol a vinte e cinco graus do signo de Libra estava um tantinho abaixo da linha do horizonte mas seus raios já clareavam o dia.
É preciso que súbito tenha-se a impressão de ver uma garça apenas pousada e que um rosto adquira de vez em quando essa cor só encontrável no terceiro minuto da aurora.[2]
Quando Spica está constelada no céu, lembra que a perfeição é uma busca e um esforço. Os processos devem ser repetidos, analisados e melhorados. Cada coisa a seu tempo. Por isso na simbologia de Spica está o respeito aos ciclos: literal ou metaforicamente você deve preparar o solo, porque é de onde a planta vai tirar seu alimento quando a reserva interna da semente se esgotar; só com o solo pronto você pode semear. Importante: as sementes devem ser selecionadas; as muito feias que me desculpem mas beleza é fundamental. Certamente você deve acompanhar todo o desenvolvimento da planta, não deixá-la ao léu! Algumas precisam de estacas para se apoiar, outras precisam ser protegidas do sol ou do frio intensos. Quando a planta estiver pronta, você deve colher o grão, mais uma vez selecionar o grão, separar o será semente para o próximo ciclo, secar outra parte; este grão, seco, você deve reidratar, deixá-lo esparramadinho em uma camada uniforme e bem arejada para que comece a germinar — isso é malte —, secar o grão de novo, triturar o grão, fermentar o grão com água, obtendo um caldo denso. Ferver esse caldo de modo que evapore apenas a substância muito fina completamente livre de resíduos. Recuperar esse vapor angelical fazendo-o condensar em uma tubulação, que desemboca em um barril, coletando assim apenas o espírito do caldo, a água da vida. Repita o processo com essa água da vida. Agora sim, o espírito que sai do alambique vai descansar num barril por onze mil dias e onze mil noites. Nesse tempo você já pode ir preparar a terra outra vez.
Minha família tem um alambique caseiro. Um dos tios que o opera contou que é delicado controlar a temperatura da destilação então eles se revezam para ficar lá observando o vapor subindo batendo no teto, a gota se formando e plic. Gota cai. É preciso cuidar de cada gota. Penso agora na poesia, a sala doze do alambique como no ambiente fechado e embriagante tão auspicioso para escrever, também no processo na destilação do texto. As palavras, diáfanas, vão se encontrando, formando uma ideia, tomando um corpo e plic:
Poética (II)
Com as lágrimas do tempo
e a cal do meu dia
eu fiz o cimento
da minha poesia
e na perspectiva
da vida futura
ergui em carne viva
sua arquitetura
não sei bem
se é casa se é torre ou se é templo
(um templo sem Deus)
mas é grande e clara
pertence a seu tempo
- entrai, irmãos meus![3]
Tsss! A poesia, tem vezes que arde que nem álcool. Inebria que nem Vênus na casa dos vícios.
Vênus na casa dos vícios como a do Vinícius. Casa doze no signo que leva o mito da agricultura. Frio e seco Virgem. É num ambiente assim, escondido e quase esquecido que o espírito será maturado em barris para que se torne uísque. Vênus prefere umidade, os barris também. Li as instruções em algum lugar: borrife o barril com água ou passe um pano úmido sobre a madeira quando tiver uma aparência ressecada para protegê-la e limitar a evaporação durante o envelhecimento da bebida.
A cor e os sabores da bebida final não vêm do espírito. É no contato com o corpo do barril, as condições de temperatura e umidade, e o Tempo, claro, que o espírito se faz uísque. A Lua do Vincius parece estar nessa transição: acabou de passar pelo Lote do Espírito e vai ao encontro de Saturno, e é bonito que ele também vai em direção a ela; Saturno é o recolhimento no barril, uma sensação de casa doze, seu júbilo. Na casa doze dele está a Vênus. Ambos regem seu Sol em queda, a sua Parte da Fortuna e também o Ascendente, portanto o próprio Vinícius. Saturno em Gêmeos, Vênus em Virgem: É preciso que haja qualquer coisa de flor em tudo isso. Qualquer coisa de dança, qualquer coisa de haute couture.
Os produtores sérios de uísque buscam incessantemente pela perfeição, a cada safra (geração) do grão e muitas vezes por várias gerações (safras) de produtores.
O uísque que está no copo é seu e você deve tomá-lo como for do seu desejo, mas antes de colocar qualquer outra coisa para nadar ali, apenas admire essa obra impecável digna da Virgem. Observe sua cor, seu corpo, sua lágrima; observe seu aroma - este, com certa distância: o álcool é tão quente quanto a boca de um cão!
Tome o primeiro gole: tsss!
O álcool ativa os receptores de dor da sua língua. Os receptores te avisam: isso é veneno!
O que você faz? Serve on the rocks. Como cantou aquele amigo gigante: nem todos os avisos irão evitar.
Os amigos, aliás, são muitos e já chegam de garrafa na mão. Afinal, o regente da casa onze, planeta significador dos amigos, é o Sol que se levantou logo depois da Spica, a dona do alambique.
Pelos amigos sabemos que Vinicius foi generoso e leal. Isso todo mundo vê. Está no ponto mais alto do mapa, a estrela mais brilhante do céu: Sirius, localizada na boca do Cão Maior.
"O uísque é o melhor amigo do homem. É o cachorro engarrafado."
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Johson Banks para Glenfiddich |
[1] estrela fixa Spica, alfa da constelação de Virgem, que no ano 1913 estava a 22° 37' 58 de Libra, entre o Ascendente e o Sol da carta.
[2] Vinicius de Moraes. Receita de Mulher
[3] Vinicius de Moraes. Poética (II)
"Borrife água de rosas verdadeira na Vênus que cai."
(Nathalia Pucha, que mora na via Rosa da Libra)
ARGO NAVIS
Argo Navis era [1] uma constelação imensa que mostrava o navio de Jasão que partiu em busca do tosão de ouro.
Vinicius toca essa constelação em dois pontos de seu mapa de nascimento. Vênus é regente da primeira casa e por isso é o próprio nativo. Conjunta à estrela fixa Markeb, da vela do navio, mostra uma pessoa que morava no mundo, não tinha casa, se sentia um exilado, nem cá nem lá. Vênus-Vela rege também os amigos e parceiros, que são significados pelo Sol que aquece seu corpo.
No Meio do Céu está Canopus, o piloto do navio, estrela que destina ao gosto pela direção, a desejar levar a tripulação a um porto seguro. Seus tripulantes eram os Argonautas. Entre eles estavam Hércules, Orfeu, Castor, Pólux, Laertes, Teseu, Baden, Tom, Chico, Toquinho, Carlos, Edu, Beatriz, Regina, Lila, Lucinha, Nellita, Cristina, Gesse, Marta, Gilda.
A viagem do Argo foi tempestuosa, e tantas vezes o navio teve que ser consertado e suas peças substituídas, que ainda que o nome se mantivesse, o navio que chegou não é o mesmo navio que partiu. Isso acontece também na vida de uma palavra, ou na vida de uma pessoa. Com cada parceria Vinicius construiu seu mundo, se modificou, tomou parte em expedições com destinos ainda desconhecidos como a Bossa Nova, o Afrosamba e a literatura Modernista. Cada amigo se tornou alicerce do seu encanto pela vida.[2]
“Porto do Havre [França], 7 de setembro de 1964
Tomzinho querido,
Estou aqui num quarto de hotel que dá para uma praça que dá para toda a solidão do mundo. São dez horas da noite e não se vê viv’alma. Meu navio só sai amanhã à tarde, e é impossível alguém estar mais triste do que eu. E, como sempre nestas horas, escrevo para você cartas que nunca mando.
Deixei Paris para trás com a saudade de um ano de amor, e pela frente tenho o Brasil, que é uma paixão permanente em minha vida de constante exilado. A coisa ruim é que hoje é 7 de setembro, a data nacional, e eu sei que em nossa embaixada há uma festa que me cairia muito bem, com o Baden Powell mandando brasa no violão. Há pouco telefonei para lá, para cumprimentar o embaixador, e veio todo mundo ao telefone.
Você já passou um 7 de setembro, Tomzinho, sozinho, num porto estrangeiro, numa noite sem qualquer perspectiva? É fogo, maestro!
Estou doido pra ver você e Carlinhos e começar a trabalhar. Imagine que este ano foi praticamente dedicado ao Baden, pois Paris não é brincadeira. Mas agora o Tremendão aconteceu mesmo! A Europa teve que curvar-se. Mas ainda assim fizemos umas musiquinhas, como Formosa. Você vai ver. Tudo sambão. Parece até que a saudade do Brasil, quando a gente está longe, procura mais a forma do samba tradicional do que a bossa nova, não é engraçado? São, como diria o Lucio Rangel, as raízes.”[3]
Na continuação dessa carta, ele conta que pedirá dois menus para a sua chegada. Comida típica brasileira. Entre os pratos, a couvinha mineira. Que fica perfeita com o feijão do Mercúrio em Escorpião. Reparo que Mercúrio faz aspectos harmoniosos com Vênus e Meio do Céu do mapa e confirmo.
Sobre o preparo da couve tenho pouco a acrescentar. Quando o alho vai pra panela com óleo quente pode queimar muito rápido e o que seria prazer vira amargor. Portanto, tenha a couve pronta para juntar ao alho e diminuir sua temperatura, dando tempo de misturar bem. No mais, acredito que todo brasileiro já tenha as direções na sua bússola interna.
[1] A partir de 1754 as partes que a compunham são constelações independentes: Quilha (Carina), Popa (Puppis) e Velame (Vel).
[2] Vinicius de Moraes. Imortais.
[3] Vinicius de Moraes. Querido poeta.
“Meu caro Vinicius de Moraes:
Escrevo-lhe aqui de Ipanema para lhe dar uma notícia grave: A Primavera chegou. Você partiu antes. É a primeira Primavera, de 1913 para cá, sem a sua participação. Seu nome virou placa de rua; e nessa rua, que tem seu nome na placa, vi ontem três garotas de Ipanema que usavam minissaias. Parece que a moda voltou nesta Primavera — acho que você aprovaria. O mar anda virado; houve uma Lestada muito forte, depois veio um Sudoeste com chuva e frio. E daqui de minha casa vejo uma vaga de espuma galgar o costão sul da Ilha das Palmas. São violências primaveris.
O sinal mais humilde da chegada da Primavera vi aqui junto de minha varanda. Um tico-tico com uma folhinha seca de capim no bico. Ele está fazendo ninho numa touceira de samambaia, debaixo da pitangueira. Pouco depois vi que se aproximava, muito matreiro, um pássaro-preto, desses que chamam de chopim. Não trazia nada no bico; vinha apenas fiscalizar, saber se o outro já havia arrumado o ninho para ele pôr seus ovos.
Isto é uma história tão antiga que parece que só podia acontecer lá no fundo da roça, talvez no tempo do Império. Pois está acontecendo aqui em Ipanema, em minha casa, poeta. Acontecendo como a Primavera. Estive em Blumenau, onde há moitas de azaléias e manacás em flor; e em cada mocinha loira, uma esperança de Vera Fischer. Agora vou ao Maranhão, reino de Ferreira Gullar, cuja poesia você tanto amava, e que fez 50 anos. O tempo vai passando, poeta. Chega a Primavera nesta Ipanema, toda cheia de sua música e de seus versos. Eu ainda vou ficando um pouco por aqui — a vigiar, em seu nome, as ondas, os tico-ticos e as moças em flor. Adeus.
Setembro, 1980
Rubem Braga”
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Vinicius de Moraes
Boston baked beans
Farofinha para depois do amor
Banana assada
Couvinha mineira
Uísque
Bolo com geleia do Sol em Libra
BOLO SIMPLES
1 ½ xíc farinha de trigo
1 xíc açúcar
6 cS óleo vegetal
1 xíc suco de laranja
1 cS fermento químico
Aqueça o forno a 200°C.
Unte a forma.
Misture os ingredientes secos, exceto o fermento.
Adicione o óleo e o suco de laranja e misture.
Acrescente o fermento e misture delicadamente.
Coloque na forma untada e leve ao forno por 30 a 40 minutos.
COUVINHA MINEIRA
receitinha pá-pum da Rita Lobo, nossa nova Dona Benta. Só como sugestão. A couvinha também é como a farofa e o amor: cada um tem seu jeito.
1 maço de couve
1 dente de alho
2 colheres (sopa) de azeite
sal a gosto
Lave, seque e descarte o talo central das folhas de couve. Na tábua, empilhe 3 folhas por vez, enrole formando um charutinho e corte em fatias bem finas. Com a lateral da lâmina da faca, amasse e descasque o dente de alho.
Leve uma frigideira grande ao fogo médio. Quando aquecer, regue com o azeite, junte o alho e mexa por 1 minuto para perfumar.
Coloque a couve fatiada na frigideira, tempere com uma pitada de sal e refogue por cerca de 2 minutos até começar a murchar – é jogo rápido mesmo, se cozinhar demais pode ficar amarga.
Transfira a couve refogada para uma tigela, descarte o dente de alho e sirva a seguir.
[texto enviado na data da lunação para apoiadores, publicado aqui em 05/03/25]
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