. “Poucos – dentre os homens ilustres – os esquisitões que não têm, ou não têm tido, no Brasil, um doce ou bolo predileto. Ou que desdenhem da arte da doçaria; ou que deixam de admirar a perícia das doceiras que, no nosso país, vêm sendo, como as rendeiras, principalmente mulheres do Nordeste.
. (...)Através do cotidiano ou quase-cotidiano é que se fixam, nas culturas, os seus característicos e se firmam os seus valores. É que se consolidam nas sociedades as suas constantes. Quatro séculos do continuado esmero no preparo de doces, de bolos, de sobremesas com açúcar, asseguram ao Nordeste neste particular um primado, no Brasil, que é hoje um dos orgulhos tão gerais da cultura brasileira quanto a arte mineira de escultura em pedra-sabão (que culminou nas criações geniais do Aleijadinho) ou a música, de sabor principalmente carioca, que atingiu seu máximo no gênio de Villa-Lobos sem deixar de continuar a exprimir-se, uma, nos choros dos Pixinguinhas, outra, num barroco moderno mas, ao mesmo tempo, tradicionalmente brasileiro.
. Doces, bolos, quindins de paladar e suas apresentações, seus enfeites, seus acompanhamentos mais ou menos estéticos são arte que não se compara à da escultura ou à da música ou à da pintura em virtude de solidez ou em capacidade de permanência, continua a exprimir-se em combinações de sabores acompanhadas de cores, formas, enfeites simbólicos. Socorrida, portanto, por outras artes.”
(...)
Será, entretanto, a expressão do paladar de uma sociedade ou de uma época, no tocante a doces, um fenômeno apenas fisiológico – aqui nos recordamos todos do clássico La physiologie du goût [A fisiologia do gosto] – ou, mais que fisiológico, social e cultural? A resposta sociológica é evidente: mais do que fisiológico, o fenômeno é sociocultural”
In: FREYRE, Gilberto. Açúcar. São Paulo: Companhia das Letras, 1997 (1939), págs 22-24
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