"Pirajá, 8 de novembro de 1822.
Sentado debaixo de uma jaqueira com as pernas esticadas e
abertas, comendo um pão de milho meio seco e dando dentadas enormes num pedaço
de chouriço assado, Perilo Ambrósio Góes Farinha resolveu reclamar com os dois
escravos que lhe faziam companhia, embora eles não tivessem cometido falta
alguma e apenas o observassem de olhos famintos. Estava irritado com a comida. Sempre
fora assim, desde pequeno, muito sensível a decepções relativas a comida. Podia
ser apenas uma expectativa frustrada, podia ser qualquer coisa, até mesmo
alguém que conseguisse chegar antes a um naco em que estivesse de mira feita,
apesar da boca cheia e da atenção vigilantíssima que costumava dar a toda a
comida sobre a mesa, enquanto devorava fragorosamente a que empilhava nas duas
ou três selhas de louça da terra que lhe serviam de pratos. Lembrou, como de
hábito sentindo o peito ofender-se e doer a solidão pesada da injustiça, que o
pai ameaçara pela décima ou trigésima vez expulsá-lo da vila e da fazenda, ao
vê-lo atacar uma das irmãs com um chuço de assar porque ela se apossara
primeiro de um pedaço de carne distante mas cobiçado. Não tinha como alcançar
aquela salpresa a resplender entre maxixes e jilós na outra ponta da mesa, nem
mesmo podia reservá-la para si com gritos e ameaças, porque o atrapalhava a
boca ingurgitada de toras de toucinho com farinha que calcava com ânsia por todos
os espaços da boca e, ao mesmo tempo, não se permitia deixar de angustiar-se
por medo de furtarem de suas pilhetas abarrotadas bocados já antecipados aos
fungos e suspiros, se parasse de lhes dar atenção ainda que alguns instantes. Então
não cabia fazer nada, a não ser, com os olhos de uma baleia ferida, voar por
cima daquele intolerável abismo entre ele e o pedaço de carne e, antes que a
irmã mordesse o que era dele, transfixar-lhe a mão com o chuço preto e
gorduroso. Por que me perseguem? – pensou em gritar ainda, revoltado, mas,
enquanto carregavam para dentro a irmã com o espeto atravessado da palma às
costas da mão, as negras levantando uma algazarra descabida, o pai arrancou-lhe
a lasca de carne de entre os dentes em meio a uma chuva de tabefes, obrigando-o
a sair da mesa e não mais comer naquele dia. Dentro do quarto em que o pai o
trancou, ardeu de ódio e despeito e chorou quase o tempo todo, em soluços
esganiçados tão fundos que às vezes pensava que nunca teriam fim. Entre outras
vinganças com as quais sonhava de quando em quando e acordava pingando suor,
jurou em voz alta que um dia obrigaria aquela irmã a passar fome enquanto ele
comesse diante dela, pois jamais, agora que fora ingratamente magoado, existirá
em toda a Terra carne suficiente para matar a fome por aquele pedaço ursupado e
arrancado à força de seus dentes desesperados.”
In: RIBEIRO, João Ubaldo. Viva o Povo Brasileiro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. 1984, pag.
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