07 janeiro 2017

Dadivosa: Quando eu era velha

Quando eu era velha, ganhava medalhas e certificados de primeira aluna da classe. O boletim estrelado não era fruto de muito estudo e dedicação, preciso esclarecer, mas de uma certa tendência a não me distrair com facilidade como acontecia com as demais crianças. Eu tinha uma concentração de gente velha. Prestava atenção na aula, fazia as tarefas de casa e sobrava mais tempo para brincar. E ler, fazer tricô, crochê, cozinhar. Porque eu era uma criança velha, uma criança-velha, uma menina-vó.
A Vó Dinah pareceu velha durante todos os seus cinquenta e poucos anos, acho. Vem das fotos, e não da memória de escorredor de macarrão, a imagem que guardo dela: cenho franzido, boca costurada, cara de enxaqueca. Uma cara de vó-velha destoante da vó-menina que brincava de desenhar carinhas no rolo de macarrão e inventar chapéus engraçados com a massa, fazia sorvete, assistia ao Sítio do Pica-Pau Amarelo comigo abraçada, me levava para passear. Nessas horas tínhamos quatro anos, as duas. Ou talvez tivéssemos cinquenta.
Com a Vó Nair pude ser velha por mais tempo, até os 81 dela, 25 meus. Jogamos cartas, assistimos à novela, dormimos na mesma cama na casa da praia cheia de gente. Ela às vezes virava menina, punha um maiô frouxo que chegava até o meio das coxas matusquelas e pulava ondas, boiava de barriga para cima, nadava até cansar, voltava com a pele ainda mais murcha e os cabelos brancos grudados na cabeça. Assim que aprendi a escrever, logo depois de velha e prudentemente fazer os deveres de casa, passava as tardes copiando em um caderninho trechos dos seus livros de receitas, os mesmos que estão comigo hoje. Fazíamos bolo de laranja, cuca de banana, sagu. Éramos companheiras, duas velhinhas sacudidas.


Cozinhei sozinha mais ou menos aos nove anos. Nada de brigadeiro, pipoca, cupcake, biscoitinhos fofos. A mesa do almoço tinha umas oito pessoas, não lembro se a refeição prestou, acho que comeram tudo. Fiz carne de panela com macarrão, comida de adulto. Eu me achava muito adulta naquela época.
Quando cheguei à adolescência idosa, minha mãe tinha a idade que tenho hoje. Era velha à minha catarata mental, mas nunca foi. Um dia me contou que não se sente com a idade que tem, que o corpo já não é o mesmo, mas a cabeça e o coração desafiam a cronologia. De fato, fica mais jovem com o passar dos anos, mais leve, ativa, brincalhona, feliz. O Babbo, também. Demorei algumas décadas para perceber o quanto são jovens. Suspeito que aprenderam com suas respectivas mães/sogras e aperfeiçoaram um bocado a arte de virar criança depois de adulto.
Aos trinta e poucos, comecei ponderada e deliberadamente a rejuvenescer. Ou rejuvelhecer, como dizia a cabeleireira de bairro que sugeriu à Mãe “fazer uma leve repicági para dar uma rejuvelhecida”. Faço piadas ruins, danço sozinha ou com as amigas no meio da sala, tenho um pouco mais de tolerância com as pessoas, com o mundo, comigo mesma. Não carrego o mundo nos ombros, carrego a meninice das duas vós dentro de mim.
Hoje faço 40 anos e a Vó Dinah me carregaria para dentro de uma loja enorme para escolher um corte de tecido, um vestido de festa e um brinquedo, como no meu quarto e último aniversário ao lado dela . A Vó Nair apareceria cedinho em casa, cantando parabéns-pra-você-nesta-data-querida desde o portão, carregando uma rosa e talvez um envelope branco com um “troquinho”. Eu faria um bolo, “já pode casar de novo”, “não precisa, vó, uma vez está de bom tamanho”. Elas falariam que meu broto é charmoso, um pão. Seriam amigas das minhas amigas. Comentariam como estou cada dia mais jovem e feliz. E eu diria que é porque nasci mais velha do que as minhas avós, mas aprendi com elas a ser menina.

http://dadivosa.org/blog/escritos/quando-eu-era-velha/

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