20 março 2023

minha querida maçã louca

 

Minha querida maçã louca,

 

Não lembro quando te vi pela primeira vez, sei que já tinha ouvido falar de você, que você era amarga, muito ruim mesmo.

Você me apareceu à milanesa, era assim que te conheciam por lá. Lembro de algumas rodelas tão finas, que só serviam para dar forma à casca de ovos e farinha.

Não dei ouvidos às más línguas e me apaixonei. Estreitamos nossa relação e você se despiu da casaco pesado do empanamento, e me mostrou sua cor púrpura majestosa, a textura suculenta de sua carne e o leve picante das suas sementes.

Comecei te cobrindo com molho de tomate e queijo. Aprendi que, em tiras, se você se misturasse no calor do forno com tomates, pimentões e cebola, todo mundo besuntado de óleo, você fica muito feliz com todos os outros, descansando na geladeira em seus sucos misturados.

Aprendi seu nome em várias línguas: berinjela, aubergine, eggplant, nassu, berenjena, melanzana, patlican.

Começamos com variações dos preparos para camas de pães: a caponata siciliana, a ratatouille francesa, ficamos um bom tempo só no babaganoush, onde aprendemos o que é o retrogosto, o bafo defumado no nariz.

Eu ia comentar sobre a nossa inocência daquela época, tínhamos tanto pra aprender! Mas afinal foi recentemente que nos maravilhamos novamente ao conhecer a conserva siciliana onde você permanece crua — e isso traz à tona o seu sabor mais pungente, próximo do picante. Ainda temos tanto a aprender, que bom.

E o dia em que te encontrei cristalizada no balcão de sobremesas!

Aprendi que se você chorar fica mais resistente. Me desculpe, é a única maneira de preparar os rolinhos hipnóticos.

Meu amor, preciso perguntar sobre amargor que querem tirar da sua carne. Eu não entendo. Você só se mostrou amarga para mim quando, irresponsável, deixei o cozimento passar do ponto. Por um tempo suspeitei que fosse algum preparo de panela, em que você absorvesse mais na água do que os óleos que tanto amamos. Mas lembra daquele curry indiano? Eu preparei com receio de que você não fosse gostar da umidade da panela e que se vingaria produzindo o tal amargor. Você se lembra? Eu que sempre preferi te vestir com mantas marroquinas, cujas especiarias me parecem mais delicadas, onde temos mais brincadeiras com as texturas: amêndoas, cardamomo deixados com pedacinhos. Vizinhas batendo à porta perguntando sobre o seu perfume.

Sim, o preparo da mussacá também envolve bastante umidade durante o tempo de forno, mas nessa altura do processo você já foi grelhada ou frita. Na primeira vez foi frita. Frita mesmo, em imersão em azeite de oliva — direitinho como mandava a receita do livro novo de receitas gregas — assim como as batatas e as abobrinhas que participam do preparo. As fatias deixavam uma poça de gordura no prato, mas foi paixão imediata! Hoje a gente tem um preparo de mussacá que é só nosso, e também por isso abandonamos a transcrição fonética inglesa, mais usada; em português ela deixa bem claro: é à nossa maneira, enxuta! Ninguém aguenta ingerir tanto óleo!

Que mentira! A nossa nova paixão chinesa também leva um fio quilométrico de óleo. E também se usa a tradução inglesa do nome: fish fragrant eggplant. Pensei que o preparo pediria alga pra dar cheiro de peixe do nome do prato e no fim é um prato temperado com os mesmos aromáticos que perfumavam as receitas de peixe daquela região. Como você riu! Quantas vezes a gente repetiu essa receita em poucos dias? E quantas voltamos a repetir quando finalmente chegou pelo correio o vinagre e o molho de pimenta com feijões fermentados que fizeram a gente chorar de comoção com um sabor que nutre até a alma?

Chegando o verão, porém, simplificamos. Trocamos pelo figurino japonês em que você tem a casca desenhada em losangos e sai, do cozimento no vapor, para um molhinho de shoyu, óleo de gergelim torrado, vinagre de arroz, gengibre e cebolinha, e fica na geladeira ali marinando, macia e ácida. Na mesma linha, o preparo com missô, que parece estar na moda.

            Nem mencionei os temperos da Turquia, onde você se dá tão bem, ou as massagens com pesto genovês, mas como te chamam os árabes, al-bãdinjãnâ, o ovo do gênio, de onde não param de sair tesouros.

 

Obrigada por estar na minha vida.

Da sua,

Aline

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