10 novembro 2019

A Nuvem de Smog



                 A Lua logo chega em Touro e no mapa a gente pode ler A Nuvem de Smog, um conto do livro Os Amores Dificeis, do Italo Calvino. Do protagonista do conto não sabemos o nome mas vamos chamá-lo de Mercúrio em Escorpião. Mercúrio está na casa 6, retrógrado, combusto, disposto por um Marte exilado e faz sextil com Saturno. E ele escreve os trechos seguintes:

                 "O periódico A Purificação era o órgão de uma empresa pública, e eu precisava me apresentar lá para definir o que deveria fazer. Trabalho novo, cidade diferente, fosse eu mais jovem ou esperasse mais da vida, teriam me dado ímpeto e satisfação; agora não, eu só conseguia ver o cinzento, o miserável que me cercava, e me enfiar nele, não tanto como se estivesse resignado, mas até como se gostasse daquilo, porque daí tirava a confirmação de que a vida não podia ser diferente. Mesmo as ruas que tinha que percorrer, eu as escolhia assim, as mais secundárias e estreitas e anônimas, embora para mim fosse fácil passar por aquelas com vitrines elegantes e belos cafés; mas não gostava de perder a expressão dos rostos cansados dos passantes, o ar espremido dos restaurantes baratos, o bafio das lojinhas apertadas, e até certos ruídos próprios das ruas estreitas (...) tudo porque aqueles desgastes e silvos externos não me deixavam dar excessiva importância aos desgastes e silvos que eu levava por dentro."

                 "Eu demorava a pegar no sono. O quarto, aparentemente sossegado, à noite era atingido por sons que pouco a pouco aprendi a decifrar. A intervalos se ouvia subir uma voz deformada por um alto-falante, que dava avisos curtos e incompreensíveis; se eu estivesse adormecido acordava pensando estar no trem, pois o timbre e a cadência eram aqueles dos alto-falantes das estações, tal como emergem durante a noite no cochilo do viajante. Depois de acostumar o ouvido, consegui pegar as palavras. "Dois raviólis ao sugo...", diziam. "Um bife grelhado. Uma costeleta..." O quarto ficava em cima da cozinha da cervejaria Urbano Rattazzi, que servia refeições até depois da meia-noite: do balcão os garçons passavam aos cozinheiros os pedidos, escandindo-os num microfone interno."

                 A Lua em Touro só vê Saturno, Mercúrio e Sol. Mas é uma Lua exaltada, e o protagonista entra na cervejaria:

                 “Entrar da rua naquele lugar não era apenas uma passagem da escuridão para a luz: mudava a consistência do mundo, do lado de fora desfeito, incerto, ralo, e aqui cheio de formas sólidas, de volumes com espessura, peso, superfícies com cores brilhantes, o vermelho de um presunto que estava sendo cortado no balcão, o verde das jaquetas tirolesas dos garçons, o ouro da cerveja. Havia um monte de gente, e eu que pela rua me acostumara a considerar os passantes sombras sem cara e também eu uma sombra sem cara entre tantas, aqui redescobria de repente uma floresta de rostos masculinos e femininos, coloridos como frutas, cada um diferente de outro e todos desconhecidos. Por um momento esperava ainda conservar no meio deles minha invisibilidade de fantasma, depois me dava conta de que eu também me tornara como eles, uma imagem tão precisa que até os espelhos a refletiam com todos os pêlos da barba já crescida da manhã, e não havia refugio possível, a própria fumaça que se levantava densa para o teto de todos os cigarros acesos no luar era uma coisa em si, com um contorno próprio e um espessura própria e não modificava a substância das outras coisas.
                 Punha-me perto do balcão sempre lotado, voltando as costas para a sala cheia de risadas e de palavras que subiam de cada mesa, e mal se liberava uma banqueta eu me sentava, tentando conquistar a atenção do garçom, para que pusesse diante de mim a toalhinha quadrada de papel, um copo de cerveja e a lista dos pratos. Era custoso eu me fazer ouvir, aqui na Urbano Rattazzi que eu observava noite após noite, da qual conhecia cada hora, cada movimento, e o burburinho em que minha voz se perdia era aquele que eu ouvia toda noite subir pelas balaustradas de ferro enferrujadas.
                 - Nhoque na manteiga, por favor - dizia eu, finalmente o garçom no balcão ouvia e se encaminhava para o microfone e escandia: "Um nhoque na manteiga!", e eu pensava no grito cadenciado como saía do alto-falante da cozinha, e tinha a impressão de estar ao mesmo tempo aqui no balcão e deitado lá em cima no meu quarto, e as palavras que se cruzavam amontoadas entre os grupos de gente alegre que bebia e comia e o tinir dos copos e talheres eu tentava espedaçá-los e atenuá-los em minha mente até reconhecer o barulho de todas as minhas noites.”




                 Cenas do próximo capítulo: por ora não há aspecto, mas na casa 7 está seu próprio regente domiciliado (Júpiter) e Vênus também em Sagitário vai em sua direção.

                 Na cozinha Dodô-Urbano-Rattazzi: nhoque de inhame (cuja gosminha dispensa o ovo e cuja cor lembra a nuvem de smog), puxado no óleo de coco sabor manteiga, com pepitas de girassol, alecrim – de Marte - e sálvia.

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